domingo, setembro 11, 2005

Aniversário de nascimento do meu amigo Orlando Neves



POMBAS

Sabe a cidade os seus nomes,
claros nomes da noite ou do sol,
assomados nos olhos das mulheres vivas
ou no beijo dos corpos que, nas ruas
ou dentro das casas, se corrompem.
A nocturnas horas adormecem nos telhados
ou nos contornos instáveis das estátuas,
reverberantes e estáticas,
sob a luz cintilante desses anúncios que iluminam a noite,
com a lentidão fixa de um gráfico do tempo.
No alto mar das praças desertas
subsiste o exíguo espaço de levitação,
aguardando o seu regresso matinal.
Romperá o sol e encontrá-las-á nos seus postos,
ágeis e vibráteis, azuis, cínzeas ou brancas,
arqueólogas do chão da cidade.
Receberam das gaivotas, à saída do rio,
a mensagem das águas, o seu fulgor e inquietação.
Não olham as nuvens
ou o horizonte agónico da corrente no fim das margens.
Pequenos pagens ou velozes estafetas
vão, de praça em praça ou de rua em rua,
com a determinação das certezas,
povoando o burgo,
dobrando esquinas,
voando aos beirais,
descendo às pedras,
planando, apressadas, nervosas, comuns,
tão de Lisboa como as pedras,
os passos, as vozes humanas.
Que as não vêem,
hóspedes fugazes dos ouvidos,
quase marinheiros outros em trânsito silencioso.
São nítidas e momentâneas,
memórias curtas que existem,
como o sangue, os cheiros,
a temperatura das crianças e dos velhos nos parques e jardins.
São as pombas de Lisboa,
levando, do rio à mais longínqua telha,
o seu voo plano, o arrulho redondo,
o susto nervoso, o bico de pão.
Comparsas de um ritmo interior,
semeadoras de pausas do olhar,
rondam as ruas, ceifadas pelo ruído,
barcos vivos que voam,
rasteiros ou aéreos,
lemes ocultos
do passo lento e destro da cidade.

In: ODES A LISBOA

N.B - Orlando Neves partiu, há meses, para outra dimensão.
Deixou uma obra ignorada pela maioria, pelo silêncio em torno de si. Mas a pegada ficou, a da obra e a do ser.
Este poema nada dirá da totalidade da sua dimensão a quem o desconhece. Procurem os seus livros e leiam-nos.